sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

DESATANDO AS AMARRAS


Por Marcel Moreno

             Este era mais um dia comum que qualquer trabalhador disposto a compactuar com os preceitos inescrupulosos do capitalismo e a doar obrigatoriamente sua mais valia, a não ser pelo fato de que ele fora reduzido a nada. Assim entendia o acontecido, já que desprovido de conhecimento a altura de poder se proteger, este também se reduziu, calando-se na vontade de esbravejar e se escondendo num ruborizar que já não era disfarçável, caiu figurativamente de raiva, talvez uma raiva de si mesmo por ter se deixado humilhar, humilhado, por ter sido maltratado, maltratado, justo ele tão crente em Deus, que num momento súbito, foi arrancado da sociedade de igualdade.

           Não era explicável o acontecido. Por que tinha que ser desta forma? Ele preferiu gritar, eu, calar. Por quê? E a pergunta que responderia sua humilhação já não vinha a sua mente. Seus nervos agora trêmulos por um estimulo animalesco, gerava uma vontade tão tremula quanto seu estado de avançar, sim, ali na jugular. Seu sangue parecia ser feito agora de puro fogo, como lava correndo no interior da terra, subia para seu rosto vermelho como brasa, corria por seus braços e pernas como se arrebentasse suas veias, e talvez aquela barriga saliente gerada pelo santo chop de todo Domingo, gerando um suor que se mostrava e saia e molhava e se fazia presente, denunciando todo seu nervosismo e impotência diante daquele fato. Era como se aqueles 15 minutos de feedback, que o reduziria a pó de homem, tivessem durada 4 horas em uma masmorra, com direito a torturas, que não eram físicas mas morais, e ameaças de morte, que não seria na guilhotina, mas seu desligamento da empresa.

          O que seria da sua família se resolvesse argumentar, e humilhar também, e diminuir também, e se impor também, e porque não se fazer mais forte, mais forte que o astro mor que se ostenta brilhante no centro do sistema solar, mais um na Via Láctea. Mas o que seriam deles? E o que seria dele mesmo? Ele que não pode aproveitar as oportunidades da vida. Que mal tinha estudo. Mal tinha família. E se caísse na sarjeta, desamparado, a mercê das ajudas esporádicas do governo? Como seria o futuro de seus filhos? E sua esposa? A quem no altar prometeu uma vida descente, para nunca mais ter que voltar para aquela terra, para nunca mais ter que voltar a ter fome de novo, para nunca mais ter que morar em barracos na beira do rio, para nunca mais ter que ficar desempregado, para nunca mais ...

         Mas quando ele ouviu aquelas e outras palavras, tudo parecia ficar inebriado com a uma ira que, contida, parecia infestar todo o ambiente. Sua mente só conseguia na verdade lembrar-se de uma frase terminada com exclamação. Eu mando! Brandiu o chefe. E a boca dele se enchia de uma superioridade, de uma sabedoria, de um ser que sou e ninguém me supera, como se à partir daquele momento, a terra se desprendera do sistema solar, e não mais girava em torno do sol na sua rotina de movimentos de translação, e agora era o sol que girava em torno daquele ser, que não mais se enxergava como ser humano, e sim como uma raça superiora, dominadora, com poderes sobrenaturais que lhe foram concedidos em um simples registrar de RH: Gerente. Ouvindo aquilo com uma vontade de chorar, olhou para fora da armação do que um dia seria um prédio e viu as margens do Rio Pinheiros, e pensou em como a natureza e linda e o homem é podre, mal. Por que este homem se achava melhor do que ele?

       No final ele não gritou. Ele não argumentou. Ele não humilhou. Não se rebaixou ao nível daquele homem. Sabia que não era certo. Não se colocou no mesmo pedestal que aquele outro quidam, como tantos outros, que achava que estava. Ele pensou no seu orgulho como homem de caráter. Ele lembrou que aprendeu com sua mãe que devia sempre se orgulhar de quem era. Que deveria sempre erguer a cabeça, bater no peito, e gritar para todos que era um homem livre e merecia ser feliz. Tudo num momento, não de fraqueza, mas de sabedoria que ali baixou. Num momento de pura vontade de livrar-se das amarras que sentia prender suas pernas, seus braços, suas vontades, sua garganta, fez o que muitos tinham vontade de fazer, mas faltavam-lhes coragem e fé. Pensou na família e na sua fé. Fé que lhe tirou da cidade de Esperantina do Piauí, e lhe trouxe para esta terra de gente grande, em brusca de uma vida melhor. Ele olhou para aquele homem de uma sabedoria ignorante, olhou fundo naqueles olhos cegos da luz de grandiosidade que achava emanar, pôs-se calmo e disse de uma só vez, usando palavras que pareciam emergir de uma sabedoria que desconhecia, e sem ponderar: Eu me demito. Aprendi que nenhum homem é dono de outro. Que ninguém deve humilhar outro homem, irmão de raça, de passado, de história, de sabedoria. Você não é ninguém para me dizer como devo ser no meu agir ou fazer. Nunca no mundo existirá alguém que terá o direito, ou mesmo o poder, de reduzir outro a pó. Porque podemos ser pobres, podemos ser humildes, desprovidos da sabedoria pedante das universidades, dos grandes centros de conhecimento. Mas há uma coisa que todos sabemos e que todos entendem. Uma coisa que vem de anos, e mesmo não passando de um mero ideal, busco eu na minha vã ignorância: A liberdade.

           Desamarrou-se das correntes, pegou sua dignidade e seu orgulho, abriu a porta, saiu, fechou a porta e chorou do outro lado. Prometeu a si mesmo que ninguém o humilharia de novo. E sem saber que rumo sua vida tomaria, tomou o elevador feito de ferro de andaime, e prometeu nunca mais voltar a aquele canteiro de obras.




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